… além dos cabelos brancos, o pai parecia-lhe profundamente triste. Mas, pela primeira vez, era uma tristeza que Duarte compreendia. Uma tristeza que não era apenas um olhar vago, uma certa maneira de fumar, um alheamento, um azedume. Era uma tristeza que se materializava em sinais inequívocos. Palpáveis. Na pele. Na carne. Nos olhos. Nas mãos.
Li este romance, escrito na nossa língua, emocionada, a exultar de curiosidade e aconchegada numa manta quentinha, num dia frio de Abril, enquanto…
Lá fora, a chuva caía, como se escorresse por invisíveis fios de prumo.
A história, surpreendente, séria e ao mesmo tempo risível, arrebatou-me desde o primeiro capítulo e deixou-me, literalmente, sem palavras para escrever sobre ela.
Por diversas vezes parei de ler e me interroguei:
Como é que JRP, um estreante, escreve tão bem?
Como é que JRP, um estreante, tem uma imaginação tão extraordinária?
Como é que JRP, um estreante, tem o dom de me levar à leitura compulsiva desta história?
Mas, também por diversas vezes, dei por mim a aplaudir a atribuição do prémio Leya 2011 a JRP.
Lembro que JRP se viu forçado a fazer uma mudança na vida, quando, em 2009, foi demitido da empresa onde trabalhava como engenheiro eletrotécnico e se viu “ metido” numa situação embaraçosa, com dois filhos, casado e uma casa por pagar. Não demorou a tomar a decisão – acertada – de escrever um livro, este que o levará à ribalta das letras portuguesas, tenho a certeza.
A estrutura do romance é original - uma vertigem de histórias soltas mas entrelaçadas, que tanto avançam no tempo como recuam.
A escrita é inteligente – simples mas apurada, com elementos repetitivos que não cansam, com palavrões que não ofendem.
A trama é genial – memórias e segredos de três gerações de uma família marcada por anos de ditadura, pela repressão política, pela guerra colonial.
Tudo começa no dia 25 de Abril de 1974, numa pequena aldeia com nome de mamífero, no sopé da Serra da Gardunha, onde vive o doutor Augusto Mendes, médico de profissão, filho de uma das mais abastadas e notáveis famílias do Porto, com negócios no Brasil e em África.
O doutor Augusto Mendes adquire a propriedade onde vive ao amigo Policarpo, que abandona o país quando Salazar sobe ao poder.
Este país não interessa nem ao menino Jesus. Antes a Rússia. Mil vezes a Rússia. Por isso, enquanto for novo e dinheiro não me faltar, adeusinho ó pátria lusa mais as estrofes de Camões, que só um país miserável tem um poeta zarolho como herói nacional.
Policarpo cumpriu a promessa que fez ao amigo e escreve-lhe longas cartas que relatam o que se passa no mundo: Da invasão de Paris pelos alemães à salvação da Europa pelas tropas aliadas. Da morte de Estaline aos golos de Eusébio. Da primeira pegada na Lua ao fim do império britânico. Tudo ele relatava.
Mas a história não se fica pelas cartas de Policarpo e continua em Queluz, onde vive António, filho do doutor Augusto Mendes, casado com a madrinha de guerra que conheceu numa livraria no Chiado, quando se preparava para partir para a segunda comissão em Angola e o seu neto Duarte, que nasceu com um dom extraordinário para a música, um pianista precoce que deixa de tocar por “ódio” ao seu dom.
Entre a aldeia com nome de mamífero e Queluz, nos arredores da grande cidade, vivem-se histórias tristes e alegres e recorda-se a guerra colonial, a campanha de Humberto Delgado, o terror da PIDE, a revolução dos cravos, a descoberta da liberdade, o ruir das ilusões nascidas em Abril, o fim da União Soviética, etc., etc..
…
...um dia, Duarte perguntou: «Pai, quem é que foi o Salazar?»
O pai responde sem hesitações: «Foi um defesa esquerdo do Belenenses.»
Apesar do ar sério do pai, a resposta afigurou-se-lhe totalmente incompatível com o pouco que sabia de Salazar. Tentou circunscrever o contexto: «Não, pai, o Salazar mau, aquele mesmo muita mau de que às vezes falam na televisão.»
O pai pousou os óculos sobre o jornal, olhou o teto, olhou o filho e disse: «Foi o cabrão que matou o teu avô, o pai da tua mãe.»
A mãe veio a correr da cozinha: «António, francamente.» Duarte virou-se para ela: «É verdade, mãe?»
Ela disse: «Não, filho, não é verdade, não ligues ao teu pai, um dia a mãe explica-te.»
Esse dia só haveria de chegar alguns anos depois.
Mas que grande primeiro romance!
O teu rosto será o último, de João Ricardo Pedro
Leya, 2012
207 págs.